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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

TEMÍVEL CASTANHO


TEMÍVEL CASTANHO

Mais uma aventura nas entranhas da Amazônia. Divirtam-se!!!!!!
A artéria do noroeste amazônico, o rio Negro, é a principal via de transporte para o interior cheio de vida desta região. Dele partem artérias menores que são seus afluentes até chegar aos capilares da floresta, os igarapés.
Nosso destino já estava traçado, e lá pelo dia 07 de setembro de 2003,
faríamos todo o caminho até chegar a estes capilares. Primeiro subiríamos o
Rio Negro até o ponto aonde ele se encontra com a foz do Rio Uaupés, que é um muito importante e habitat de grande parte das etnias da região. Seguiríamos caminho através do Uaupés e entraríamos em outro afluente importante, o Rio Tiquié. Rio Tiquié, casa da etnia mais respeitada e influente, os Tukanos. Estes estão no topo da hierarquia das etnias segundo a mitologia regional indígena.
Rio de inúmeras curvas, alguns dizem que são 300 o total de curvas, o que faz dobrar o tempo de viagem. Rio de cor castanha, diferente dos demais rios da região de cor predominantemente negra.
Até o nosso destino, o pólo-base de São José II neste mesmo rio, foram 1 dia e meio de viagem pernoitando no rio Uaupés, no pólo-base de Taraquá. Ao chegarmos em São José II, muito cansados da viagem, nos deparamos com os 92 degraus de escada , encravada na beira do rio por onde teríamos que levar todos os nossos pertences até o topo. Material como rancho, botija de gás, roupas, material odontológico e galões de gasolina que teríamos que subir até o pólo. Quase enfartei quando vi aquilo. Mais tarde soube que muitas das comunidades que atenderia no rio Tiquié se encontravam no topo de elevações muito parecidas com aquelas. Tentei aliviar o pensamento dizendo que seria uma boa oportunidade para fazer exercícios.
Antes da viagem para o Tiquié já me prepararam que aquela era uma das áreas mais extensas e difíceis de toda a área do distrito de saúde indígena, mas não devido ao rio Tiquié, e sim a um igarapé de nome Castanho, o temível castanho e outros igarapés. Descobrimos mais tarde que este curso de água é a razão pela qual o Tiquié tem suas águas de cor castanha já que este deságua no rio em questão.
Na primeira oportunidade após um descanso estratégico, conversamos com a equipe médica para verificar as condições do igarapé e checar se seria possível seguir todo o seu trajeto. Se conseguíssemos chegar até a última comunidade seríamos a primeira equipe odontológica a chegar por via fluvial para o atendimento. As outras viagens foram feitas em missões aéreas.
As comunidades deste igarapé são de origem diferente da dos Tukanos, ribeirinhos do Tiquié. Em sua maioria são Yohupdas, que junto com os Hupdas da margem direita do rio Tiquié e os Dow, no Rio Negro, formam o tronco lingüístico Maku, ou melhor dizendo, Japurá -Uaupés. Maku é um termo pejorativo considerado ofensivo por eles e que a tradução deste é evitada. Possuem esta denominação de Japurá - Uaupés já que vivem entre os rios Japurá, afluente do Solimões e o grande Rio Uaupés. São povos seminômades, exímios caçadores e conhecidos por muitos como os "senhores dos caminhos". Transitam entre suas comunidades e chegam a passar dias andando na floresta. Vivem no interior da floresta, afastados das margens dos grandes rios, ao contrário da maioria das etnias da região.
Trabalhar com saúde indígena sem possuir um conhecimento prévio do modo de vida destes povos e a sua cultura é ignorar todo um povo e suas tradições, é o mesmo que pedir para que seu trabalho não seja bem vindo na região. Através de um curso de antropologia, leitura sobre a região e a área aonde iria trabalhar e conversas com amigos passei a conhecer e respeitar o modo de vida deles e assim creio eu que passei a ser respeitado por eles. Pode acreditar que se eles não forem com a sua cara, exigirão nos conselhos distritais que a sua pessoa se retire de lá.
Voltando aos Yohupdas, são uma etnia mais arredia, que pouco se interessa pela influência e arrogância de nós "brancos". O contato mais freqüente com esta etnia está apenas começando e eles ainda são um pouco desconfiados.
Iniciamos nossa jornada rumo ao interior do igarapé alguns dias após a nossa chegada em São José II. No mapa dava para ter uma certa noção da grande extensão deste igarapé, mas de maneira alguma conseguiria imaginar o que estava por vir olhando apenas no mapa. Logo na foz do nosso amigo, Castanho, a cor castanha do curso de sua água se acentua e um boto nos recepciona o que denuncia a quantidade maior de vida animal presente no local. Os animais selvagens, devido a um maior número de habitantes nas margens dos grandes rios, são caçados em maior número, e por isso adentram o interior da floresta na tentativa de se protegerem. Era para aonde nós estávamos indo, na direção dos animais. Não é a toa que o maior número de acidentes com animais peçonhentos se encontram nas populações Yohupda e Hupda.
Jararacas são freqüentes e a tão temível surucucu se encontram na região. Esta última só se encontra bem no coração das florestas e você, não queira encontrar numa destas. Cobra que chega a medir alguns metros, extremamente agressiva, de comportamento territorial ou seja, se alguém invadir seu território e esta não estiver de bom humor no dia, ela é que vai te buscar, sem que você precise sequer passar perto. Dá o bote uma vez e espera; se a "presa", no caso você, se mexer é outro bote na certa. Possui veneno que tanto dá necrose tecidual quanto tem ação neurotóxica e é aí que mora o perigo. Em grande parte das mortes ocorridas por animais peçonhentos, a responsável é a surucucu . Pior do que ela só a coral, que parece uma cobra de brinquedo, não dá o bote, possui a boca pequena e não consegue abocanhar áreas grandes, mas se for picado por uma delas, no dedo ou no calcanhar, e não tiver socorro por perto é melhor já ir cavando a própria cova, por que dentro de umas duas horas já deve estar conversando com o nosso Senhor todo poderoso, ou com o rival dele.
Após as nossas boas vindas dadas pelo boto, outro elemento muito importante nos igarapés já mostra que está lá para atrapalhar, atrasar ou impedir nosso caminho até o final do igarapé. Nossa voadeira, agora menor que a anterior e com um motor 15 HP, atinge um tronco submerso nas águas turvas do castanho, sem maiores danos. À medida que adentramos o igarapé a vida se revela de diversas formas durante o trajeto. Mais botos, cor de rosa ou não, lontras (ariranhas), araras, papagaios e aves de diversos tipos estão nos acompanhando nesta jornada. Quanto mais entramos mais estreito o igarapé fica.
Paramos na comunidade de Santa Rosa, de origem Tukana, para pedir ajuda ao agente de saúde indígena daquele local. Ninguém da minha equipe havia entrado no castanho antes e nós precisaríamos dele mais tarde como tradutor da língua, já que os Yohupda em geral não falam o português. O agente de saúde, Anacleto, concorda em seguir viagem conosco.
Passando a comunidade de Trovão, na metade do caminho, o igarapé , que antes era até razoavelmente largo, estreita-se de tal forma que certos trechos possuem pouco mais do que a largura da voadeira. A luta entre a floresta e o rio se torna evidente. A floresta tentando retomar o que foi tomado pelo leito do rio e o rio por sua vez na tentativa de resistir a esta ação. Troncos de árvores grandes deitam-se sobre seu leito, árvores menores e suas copas pedem espaço para poderem alcançar um raio de sol sequer naquele cobertor de folhas densas que são as folhas das árvores de maior porte. E os habitantes destas copas e troncos, à medida que passamos insistem em pegar uma carona. Aranhas, besouros, kabas (um tipo de marimbondo) e até sapos caem nas nossas cabeças cada vez que a voadeira toca em uma destas copas. Passando por baixo de troncos e às vezes até por cima destes a ponto de termos que empurrar a voadeira ou a cortar os troncos menores com um machado, abrimos caminho entre a vegetação e as curvas do igarapé. Aliás, muitas curvas! Estas formam um labirinto de pequenas entradas em que o caminho correto a seguir só é denunciado pelo suave movimento da correnteza.
Paramos na beira para um almoço breve e 10 horas depois de nosso início de jornada conseguimos chegar à inatingível São Felipe. Após alguns tombos, do auxiliar e do AIS, na água e muitos troncos depois, chegamos ao nosso destino. Apesar desta ser a comunidade mais distante de todas elas, ela é de origem Yepamaçan que são parentes dos Tukanos. A recepção foi calorosa com um jantar de quinhanpira (peixe com pimenta), curadá (um tipo de beiju feito de goma de tapioca, delicioso!) e farinha. A culinária local é basicamente constituída destes elementos e outros derivados da mandioca e mais algumas frutas e caças da região. Como não tem geladeira, a caça e a pesca, são conservadas moqueadas, ou seja, ficam a noite inteira debaixo de uma fogueira em brasa aonde desidratam e desta maneira consegue-se conservar a comida por mais tempo. Algumas das comidas locais apesar de bastante simples são muito saborosas. A paca moqueada ou cozida é uma delícia e o jacaré é outra especiaria que vale a pena saborear. Larvas de Kaba, apesar da aparência, também são saborosas e deixam um gostinho doce na boca.
Dormimos em uma maloca, completamente aberta, em uma noite fria. Se não fosse meu saco de dormir a noite não teria sido boa. Pela manhã, atendimento tranqüilo e pude exercitar um pouco do meu Tukano, já que necessitar do tradutor toda hora em que você precisa falar alguma coisa é muito cansativo.
Terminado o atendimento arrumamos nossas coisas para a jornada de volta. Paramos na comunidade Hupda de Guadalupe para atendimento. Casas bem simples e 2 pessoas para o atendimento. Após o atendimento voltamos para o igarapé para continuarmos a viagem. O caminho de volta parecia ser outro. O nível de água do igarapé havia subido um pouco o que muda o perfil do trajeto. Troncos que antes estavam aparentes agora estavam submersos, troncos que antes havíamos passado por baixo, agora teríamos que cruzar por cima. Em um destes troncos que a voadeira passou por cima, foi a minha vez de dar um mergulho nas águas do igarapé. Cortando alguns galhos com o meu facão, ou terçado, que é um termo mais usado localmente, perdi o equilíbrio e caí. Todo encharcado seguimos caminho.
A partir deste instante, parece que Boraró, o terrível espírito das florestas que ataca as pessoas com dardos e flechas mágicas, acordou. O céu, antes claro, se tornou cinza. O vento começou a soprar forte, o que na Amazônia sempre indica que vem tempestade por aí. As copas das árvores mais altas começaram a balançar furiosamente. O ranger dos troncos encostando uns nos outros soa alto e a imaginação começa a trabalhar vendo uma daquelas árvores gigantescas caindo sobre a minha cabeça. Gotas grossas começam a cair e logo após o céu desaba produzindo aquelas chuvas que só o equador pode produzir. Eu que já estava todo encharcado me molhei mais um pouco. A viagem com aquela chuva que chega a machucar pareceu não ter fim. Mas como quase todas as chuvas torrenciais por aqui, após alguns muitos minutos já haveria se extinguido e a próxima comunidade para o atendimento já estava próxima.
São Joaquim era esta próxima comunidade. Originalmente de etnia Yohupda eles se abrigavam em casas minúsculas de palha sem parede e com quase nenhum pertence à vista, somente uma pequena fogueira no centro de cada casa, alguns cestos e algumas redes eram vistos. Desembarcamos na comunidade e a chuva resolve nos perturbar de novo. Abrigo-me em uma das cabanas e tenho como companhia um gato, um cachorro e meu auxiliar. A chuva continua caindo forte, e as goteiras da casa aparecem e me fazem pensar como aquelas pessoas dormem ali em uma noite fria e chuvosa. Ao mesmo tempo em que a brasa é soprada pelo vento e ganha força, a goteira que cai sobre o centro da mesma a faz diminuir de intensidade.
O tempo passa e a chuva se vai do mesmo jeito que chegou, em um piscar de olhos. O atendimento é feito em uma casa com telhado de zinco tão cheio de furos que mais parece uma peneira. Ainda bem que a chuva se foi! Seguimos caminho logo após o atendimento para pernoitar na comunidade de Trovão.
No pé de uma serra esta comunidade de ares serranos nos recebe com a tão famosa e consumida quinhampira, de queimar os lábios. À noite, atamos nossa rede em uma escola feita de barro e madeira. Trovão era a última comunidade do Castanho a possuir radiofonia. Ao deitarmos na rede podíamos ouvir o “mosaico “ lingüístico do rádio. Baniwas, Tukanos, Wananos, Karapanãs, Barés e tantas outras etnias se comunicam através do único meio de comunicação entre eles aqui na floresta, o rádio. A comunicação é feita na língua nativa e a interferência de uma rádio colombiana na freqüência complica ainda mais o entendimento das línguas. O sono vem e adormeço na rede quentinha dentro do meu saco de dormir.
Após esta comunidade as coisas se tornam mais fáceis, e os outros dias passamos sem maiores problemas. Final de semana, e finalmente chegamos no pólo base. Descanso para variar um pouco, para me preparar para a próxima semana, em que teremos que enfrentar o igarapé Taraquá, a caminhada mais longa do médio Tiquié..............

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