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terça-feira, 20 de outubro de 2009

UMA NOITE COMO OUTRA QUALQUER


Era uma noite como outra qualquer. Estávamos em uma das varandas do posto de saúde da reserva indígena dos chiquitanos, estado do MT, fronteira com a Bolívia. Todas as noites, antes da energia elétrica chegar, ligávamos o gerador de energia a diesel e assistíamos a novela, um filme ou um DVD de música qualquer.
Pessoalmente eu não gosto de assistir DVD´s de música, mas o ritmo do lambadão era sucesso entre os “brancos” da equipe de saúde e principalmente entre os indígenas então, eu era praticamente forçado a assistir. De qualquer maneira representava uma boa experiência cultural.
As novelas já haviam se tornado um tipo de vício, como na cidade, e eram raros os dias em que não apareciam para assistir ao programa preferido. A beleza dos ambientes, das atrizes e dos atores parecia ser hipnótico, principalmente para quem não era acostumado com esta atmosfera.
Após a novela todos os indígenas voltavam para suas casas e eu desligava o gerador de energia.
Um grupo de jovens saiu pela escuridão sem uma lanterna sequer, o que é muito comum na aldeia. Apenas a lua crescente iluminava o caminho permitindo que se vissem somente vultos, mas mesmo assim o grupo saiu conversando alegremente.
Já me encontrava de vela acessa, nos últimos preparativos antes de adormecer e ouço alguns gritos nos chamando. A equipe fica alerta!!! Depois do expediente não é comum ter atendimento e sempre quando tem, geralmente é pepino. Grávidas, picadas de cobra e alguma criança pequena doente com febre estavam dentre as alternativas. Qual delas seria??
Quando os jovens chegaram esclareceu-se o fato. Picada de cobra. A maioria andava de chinelos havaianas e um deles não conseguiu ver o vulto da cobra no solo escuro e banh!!!! Veio a mordida!! Primeiro o susto , depois a ardência e a dor excruciante.
Quando chegou não conseguia mais dar passos e dois amigos o carregavam.
Apesar de ser um posto de saúde em meio a uma floresta indígena, não existem soros antiofídicos. O risco de morrer é maior caso a pessoa progrida para um choque anafilático em uma reação ao próprio soro do que a pessoa morrer da picada de cobra, dizem. Apesar disto, à 9 quilômetros do posto de saúde, existia um posto avançado do exército que tinha o soro antiofídico. É uma situação no mínimo estranha um posto de saúde que possui enfermeira e muitas vezes até médico não possuir o soro e um posto avançado que possui apenas um profissional que somente é treinado pelo exército para esta função ter o soro. São as incongruências do nosso país.
Chegaram gritando pela equipe e depois de ficar ciente do ocorrido pensei:
-O que nós iremos fazer?
Com o paciente já na maca, um dos indígenas corre em direção ao destacamento de fortuna, 9 km dali..
O paciente se contorcia em gemidos abafados pela própria intensidade da dor.
Os conhecedores de ervas chegam! O tratamento tradicional inicia-se antes da administração do soro.
Existe uma árvore que se chama lixeira e sua folha, a qual lembra uma lixa, é conhecida pelos curandeiros como fonte de cura ou alívio para a picada de cobra. O problema é que só funciona associada a uma substância que faz nós “brancos” torcer o nariz de nojo. Esta é a urina. E foi feito!!! Folha de lixeira “macetada” com urina – e dos outros. Deveria ser ingerida para alívio dos sintomas. Assim foi feito, em uma golada só!!! Torci o nariz, mas compreendi.
Enquanto as ervas faziam a sua parte os benzedores entraram em ação com as suas rezas curativas. O paciente alivia-se por um momento!! Diz que a “benzeção” do seu avô está começando a surtir efeito.
As horas passam e o indígena que foi buscar socorro já deve ter chegado ao destacamento militar.
Os minutos parecem horas e eu armo minha rede na varanda para esperar os acontecimentos. Descalço, ando pela varanda. De repente, piso em alguma coisa que parece me ferroar. A sola do pé começa a latejar e logo o pé também. A dor é intensa e deito em minha rede. Lembro que a noite, formigas carnívoras gigantes apelidadas de tocandiras costumam zanzar pelo local. Penso:
Deve ser uma destas!!
Com a perna enrijecida não consigo mais andar direito. Sinto a dor que o meu amigo indígena está sentindo. Imagino, que se uma formiga está fazendo isto comigo, o que será que uma cobra faria?!
Agora o dentista e o indígena se contorcem de dor. A dor de ambos vem em surtos repentinos os quais aliviam repentinamente da mesma forma.
O tempo passa e a picada da formiga começa a aliviar.
O indígena permanece no soro fisiológico e nas rezas enquanto o soro antiofídico não chega.
Mais tarde o socorro chega de carro e o paciente é levado para o destacamento para aplicação do soro antiofídico e logo após é levado para a cidade. O posto de saúde acalma-se novamente.
Retiro minha rede da varanda e sigo para o quarto. A adrenalina da agitação me deixa pensativo, mas o cansaço me vence e adormeço mais uma vez.
Mais uma noite na floresta!!!!! Mais uma lembrança na memória. Mais uma estória para contar.
A culpada foi a Jararaca, ou melhor, quem pisou nela!!
Fui................................