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domingo, 26 de julho de 2009

MUDANDO AS ESTAÇÕES


MUDANDO AS ESTAÇÕES


As primeiras chuvas de outubro começam a cair novamente. Mais um ciclo da natureza se completa no centro oeste brasileiro. As marcas da secura nas terras pantaneiras apagam-se e o chão volta a ganhar o aspecto encharcado que deu o seu nome.
Minha próxima entrada para a terra dos Bororos e dos Guatós está marcada para a segunda metade do mês de outubro (2006) e a chuva que cai começa a preocupar os coordenadores da organização não governamental para a qual eu trabalho. Não é a toa que o pantanal recebe este nome. Terra difícil de ser domada nesta época do ano, permanecendo cada vez mais encoberta de água à medida que a estação das chuvas avança. Ainda existem trechos secos e precisamos aproveitar ao máximo o período que podemos entrar no território indígena por via terrestre.
Marcamos para o dia 15 de outubro a nossa entrada.
Mochila nas costas, barraca na mão e materiais de trabalho já na carroceria do veículo sinalizam que estou pronto para mais um período de trabalho e aventuras. Apesar de ser fisicamente cansativo e mentalmente estressante devido à distância da família, o trabalho com indígenas tem suas compensações. O aprendizado constante por estar vivendo inserido em uma outra cultura e um outro ambiente nunca deixa a monotonia das quatro paredes do consultório reger o dia a dia. É quase uma aventura constante, com seus riscos e prazeres.
A barraca ao invés da rede serve para enfrentar os mosquitos, constantes nesta época.
A antiga Toyota bandeirantes, acostumada a enfrentar estes terrenos alagados se encontra avariada na oficina sendo o único veículo disponível uma Nissan frontier novinha em folha.
As diversas estradas de acesso ao interior pantanal são estradas de terra. Saindo de Cuiabá seguindo pelo lado oeste do rio Cuiabá temos dois acessos. Um é seguindo pela transpantaneira que é uma estrada em boas condições para uma estrada de terra que leva até porto Jofre, bem na divisa com o estado do Mato Grosso do Sul, o outro acesso é pela estrada que leva até Porto cercado e onde se encontra o Hotel Sesc Pantanal às margens do rio Cuiabá. Este hotel é de ótima qualidade e em parceria com o poder público está asfaltando sua estrada de acesso, mesmo depois da resistência de grupos ambientalistas. Poconé é o município de entrada para estas duas vias. Nenhuma destas alternativas nos leva até o nosso destino, a reserva indígena Perigara, a qual fica do lado leste do rio Cuiabá, às margens do rio São Lourenço.
As únicas vias de acesso por terra até Perigara começam pelo município de Santo Antônio de Leverger. Uma segue por entre as fazendas da região até alcançar o povoado de Joselândia no município de Barão de Melgaço e o outro acesso passa pelo distrito de Mimoso, alcançando mais à frente o mesmo povoado de Joselândia. Apesar de mais longa esta segunda via é a melhor escolha por estar em melhores condições.
Depois de Joselândia, tem o povoado da pimenteira e é a partir daí que a aventura realmente começa.
Carro completamente abarrotado de carga, saímos de Cuiabá de manhã para Santo Antônio de Leverger indo em direção à Mimoso, passando por Joselândia e seguindo até a pimenteira. Até aí o “passeio” foi tranqüilo, apesar da estrada que leva até Joselândia estar em obras e a chuva que a fez virar um sabão. O segredo era maneirar na velocidade e tentar manter o carro na direção certa. Qualquer deslize era ficar preso na vala lateral da estrada. Já que esta estrada cruza terras alagadas, a mesma teve que ser aterrada em alguns metros para que ficasse livre dos constantes alagamentos que ocorrem nesta época do ano.
Pimenteira à vista. Apenas algumas casas, uma pequena escola e muita área de pasto. A última porteira do povoado é o limite entre as estradas razoavelmente transitáveis e a área de rally total. Atravessaremos primeiramente terras de fazendas, depois uma área da reserva ecológica particular do Sesc Pantanal e depois a área da reserva indígena Perigara até o leito do rio São Lourenço onde fica a sede da aldeia. Alguns poucos quilômetros que em dias secos são feitos em duas horas.
Logo após a última porteira da pimenteira, o veículo para, o motorista engata a tração do veículo indicando o início das dificuldades. Neste caso estando em uma frontier é mais vantajoso já que na Toyota bandeirantes, vc tem que saltar do carro para “traçar” o veículo.
Passamos pelo primeiro atoleiro que mais parece uma trilha entre árvores coberta por uma lama fétida. Após este trecho ocorre uma sucessão de diversos atoleiros. É um tal de liga tração, desliga tração que não acaba mais. Na maioria dos trechos a estrada não existia e apenas se via um leito coberto por água em meio à vegetação. O trecho mais conservado era até o limite da reserva do Sesc com a reserva indígena. Passamos até um posto de controle da reserva particular para perguntar sobre as condições das estradas mais à frente e aproveitamos para almoçar já que os guardas florestais, muito gentis, nos ofereceram um churrasco que estavam fazendo. Era dia de feriado.
Ficamos sabendo que as condições das estradas não eram das melhores, mas também não as piores. No dia anterior, os guardas florestais da reserva tiveram que rebocar com um trator, um carro que dormiu em um atoleiro mais à frente. Disseram-nos que dava para passar, mas o pior estava dentro da reserva indígena. Um local que apelidaram de Bebe, o qual é uma grande depressão na estrada que normalmente já é alagada.
Mesmo prevendo dificuldades, resolvemos tentar a sorte. Já tínhamos percorrido mais da metade do caminho, tínhamos que tentar!
Partimos confiantes e passando a divisa das reservas caímos na real. A estrada antes mais larga, estreitasse de tal forma que quase não se vê a trilha dos carros a não ser quando passamos por áreas de campos de vegetação rasteira. Ás vezes me perguntava se realmente estávamos na estrada. Trechos mais altos ainda secos e trechos mais baixos completamente alagados alternavam-se.
Mais tarde, o inevitável. Apesar do veículo “traçado”, ficamos presos. Uma vez que o peito de aço da caminhonete prende no fundo do atoleiro as rodas ficam suspensas e patinam livres não adiantando em nada a tração nas quatro rodas.
Depois de alguns anos de estrada de chão aprendi que não adianta tentar não se sujar em situações como esta. Tem que tirar o tênis e camisa, arregaçar a barra da calça e encarar a lama sem medo se quiser sair do lugar.
Apesar de o carro ser próprio para terrenos ruins, não estávamos aparelhados como deveríamos. Teríamos que possuir conosco materiais como enxadão, pá, facão e machado para casos extremos como este.
A solução foi cavar com a mão mesmo ou com tocos de madeira e procurar pedaços de pau para levantar as rodas do veículo em uma manobra que se chama macaco baiano.
Só quem já enfrentou uma estrada “feia” sabe da dificuldade e da falta que faz o equipamento certo na hora certa.
Os minutos vão passando e o veículo vai andando lentamente, atolando e desatolando em apenas alguns metros. Movimentos repetitivos de cavar, encaixar os pedaços de pau embaixo da roda e empurrar sucedem-se.
Passado esta dificuldade, mais à frente, ficamos presos de novo. Desta vez em uma depressão em que as rodas do veículo patinavam no barro liso e o carro não saía do lugar. E mais uma vez, saímos do carro para todo aquele processo anterior.
As horas se passam e já são por volta das quatro da tarde.
Pensava comigo; já é a segunda vez que ficamos presos e o tal do atoleiro do Bebe nem chegou ainda.
Mais um obstáculo superado e logo mais à frente, presos de novo!
O motorista que recebeu a ordem de que se não conseguir passar era para voltar pondera se vale mesmo à pena continuar. Já se aproximam de 5 horas da tarde e os mosquitos começam a aparecer em quantidade. A idéia de ter que dormir na estrada não agrada ninguém, mas se fosse preciso seria a única alternativa.
Naquela situação tínhamos duas alternativas, ou seguíamos em frente em um imenso atoleiro coberto pelas águas ou voltaríamos para Cuiabá. Após uma rápida votação decidimos que voltaríamos, pois a pior parte da estrada ainda não havia chegado e não nos agradava a idéia de passar a noite em uma estrada no meio do nada, com chuva e cheia de mosquitos.
Desatolamos o carro de ré e seguimos nosso caminho de volta a toda a velocidade. Naquela lama toda, o carro patinava e tinha vezes que nos víamos deslizando de lado. Passamos os atoleiros anteriores a toda, forçando a caminhonete ao máximo sob o risco de alguma avaria, mas Deus estava conosco e permitiu que chegássemos ao posto da reserva particular do Sesc logo ao anoitecer. O carro estava coberto de lama do fundo ao teto. Nós estávamos cansados e sujos, mas felizes por estar em um lugar onde seria possível um banho e uma noite mais agradável.
Cinco horas da manhã; acordo com o dia clareando e os pássaros servindo como meu despertador. Dia tranqüilo e sem chuva. Tínhamos mais alguns trechos difíceis pela frente, mas estávamos voltando para a Cidade o que nos confortava.
Partimos com destino a Cuiabá tranqüilos imaginando como seria a nossa nova tentativa para chegar até a aldeia o que aconteceria mais alguns dias depois.

sábado, 4 de julho de 2009

VOZES SILENCIADAS


Vozes silenciadas

Se estiver sem tempo não continue esta leitura... Abaixo encontra-se uma leitura reflexiva e histórica. Ao ler cada frase procure utilizar o imaginário e aprofundar os sentimentos a medida que prossegue na leitura.



Mais uma tarde de chuva na aldeia chiquitana.
Poucas pessoas vêm à procura do meu serviço odontológico já que me encontro sem diesel à quase duas semanas o que na aldeia significa sem energia elétrica. Consequentemente restaurações usuais ficam impossibilitadas de serem realizadas e somente extrações e restaurações provisórias são feitas.
No tempo vago me ocupo com a minha horta, em conversa fiada com alunos e diretores da escola, cozinhando, escrevendo e com pensamentos diversos sobre a minha família e a vida em si.
Um destes dias estive pensando sobre os próprios chiquitanos, Quem são eles? De onde vieram? Estes pensamentos me fizeram voltar no tempo, mais precisamente no ano de 1542...

Neste ano, os primeiros espanhóis chegam a chiquitania ( atualmente Bolívia e parte do Brasil ) em busca de uma via de comunicação para o território que é hoje o Peru. Estes por sua vez resolvem fundar uma povoação no local como forma de assegurar o caminho encontrado. Logo após resolvem avançar até o rio grande fundando então a cidade de Santa Cruz de La Sierra, um lugar povoado por mais de 20.000 indígenas.
A partir deste momento os indígenas passam a ser escravizados e já em 1561 estima-se que 40 à 60,000 indígenas vivam em regime de servidão. Os que não eram escravizados morriam, seja por conflitos ou por epidemias como a peste avassaladora do séc. XVI, a varíola.
Como não podiam faltar, os missionários também faziam incursões na região e estes, estavam conscientes da enorme responsabilidade que tinham nas mãos. Sua missão era “pacificar” os indígenas.
Imbuídos pelo desejo de salvação e pela fé, acreditavam ter pela frente um trabalho inédito, em que tudo estaria por se fazer em nome e para a glória de Deus.
Já do lado Brasileiro atual, a coroa portuguesa, resolve marcar presença no lado oriental ao saber da existência de missões no lado espanhol.
Em 1712, é fundada Vila Bela ( sudoeste do estado atual de Mato Grosso ), sede da capitania de Mato Grosso.
Mais tarde, com o crescimento do comércio e da população promovido pela descoberta de ouro nas minas do Sutil ( Cuiabá ) e de Vila Bela, muitos latifúndios foram estabelecidos junto às rancharias dos índios. Em 1850, a promulgação da lei de terras, intensificou a ocupação das terras chiquitanas tidas como devolutas. Devolutas significa terras públicas ocupadas por particulares ou não. Devido à estas ocupações e atividades missionárias a língua chiquitana foi sendo esquecida lentamente.
Mais recentemente, um grupo de trabalho indígena, identificou diversas comunidades chiquitanas remanescentes espremidas entre os latifúndios ou ocupando terras tidas como das forças armadas localizadas na área de influência do Gasoduto Bolívia-Mato Grosso. Entre estas comunidades, se encontram as comunidades de Acorizal e Fazendinha para as quais eu trabalho.
Atualmente, a reserva chiquitana nomeada de reserva indígena Portal do Encantado já foi identificada oficialmente e se encontra em processo judicial para a demarcação de suas terras.
Descendentes dos latifundiários invasores e novos invasores fazem ameaças a população indígena local ao sentir a eminência da perda de “suas” terras.
Enquanto isto, a língua chiquitana, a qual esteve em processo de extinção , começa a ser resgatada mesmo que timidamente nas duas escolas locais. Um dos poucos conhecedores da língua no Brasil se foi, morreu, e a sua voz pede socorro. Todos os conhecedores da língua no lado brasileiro estão em idade avançada e começa uma corrida contra o tempo para resgatar a mesma. A língua chiquitana tem pressa, caso contrário, poderá ter sua voz silenciada quisá para sempre.
Só pode existir uma razão para alguém ser contra a causa indígena e a demarcação de suas terras: - A ignorância total dos fatos históricos. Enquanto a ignorância e a ganância prevalecem os índios continuarão sendo ameaçados e sua riqueza cultural e língua continuarão a serem esquecidas. Como bom otimista, vejo um horizonte possível para a conciliação das diversas culturas existentes neste nosso brasil em uma convivência harmoniosa e de bons frutos.
Lutemos pelo fim da ignorância e pela disseminação de fatos históricos como estes tão similares entre as diversas etnias do nosso país. Estórias de ocupação, servidão e mortes. Vamos mudar esta estória, vamos mudar a História...


FIM


OBS: Dados históricos extraídos da Dissertação de mestrado da lingüista Áurea cavalcante Santana.