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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

IGARAPÉ TARAQUÁ


IGARAPÉ TARAQUÁ
Floresta Amazônica, extremo oeste brasileiro.

Mais um dia de atendimento a nossos amigos Hupdas. Moradores de locais longínquos e não convencionais.
Desta vez iríamos até a comunidade de Santa Terezinha, às margens do Igarapé Taraquá - a caminhada mais longa do médio Tiquié – sendo igualada apenas pela comunidade de Nova Fundação de etnia Hupda também.
Santa Terezinha, apesar de estar à margem de um igarapé, encontra-se isolada quando se pretende um acesso fluvial. Este igarapé encontra-se intransponível. Galhos e troncos cruzam seu leito, impedindo a passagem de embarcações, o que nos deixa como única alternativa a caminhada.
Encostamos no porto bem perto da saída da trilha. Para os exclusivamente urbanos, imagina-se um porto como um lugar cheio de barcos e piers com toda a infra-estrutura comun a estes lugares. Aqui é diferente! Todo o lugar em que se é possível desembarcar e que dá acesso á algum lugar é chamado porto, e este é o nosso porto; um barranco, muitas árvores e uma trilha.
Descarregamos nossos pertences. Tudo que se precisa para um dia de trabalho e uma noite de descanso. Comida suficiente para um jantar, uma muda de roupa, panela, fogareiro, um botijão pequeno, material odontológico, rede e cordas entre outros. Sabíamos que com todo este material não seria possível carregar tudo e necessitaríamos, mais tarde, de ajuda dos habitantes locais com o que não conseguíssemos levar na primeira viagem. Havia pequenas caixas com instrumentais odontológicos localizadas em uma caixa de maior porte. Como minha mochila estava aparentemente leve, retirei a maior delas para aliviar o peso para quem fosse carregar a caixa grande para a aldeia. Esta caixa grande de instrumentais devia pesar ao menos uns 20 quilos os quais agora devia ter reduzido para uns 16 quilos.
Agora já dava para sentir o peso da mochila me puxando de encontro ao chão, mas não imaginei que aqueles quatro quilos a mais fariam tamanha diferença mais tarde.
Começo de caminhada tranqüilo. Como toda trilha em meio a vegetação amazônica, os sons se intensificam à medida que adentramos a mata. As árvores crescem e o sol encontra dificuldades em atravessar a densa vegetação. O calor e a umidade combinam-se de maneira bem desagradável. Falta a brisa do litoral, mas sobra em vida ao meu redor. Nunca se sabe as surpresas que a floresta nos reserva, e a cada passo, os olhos atentos desenham árvores, folhas e frutos até então desconhecidos para mim. Uma multidão de formas, cores e sons deslumbram em intensidade e aguçam os sentidos. Plantas e plantas sobre plantas, no caso das epífitas, descrevem imagens que revelam a natureza selvagem do local. A competição é feroz até pela luz solar. Quem chega mais alto vence!.
Os animais se escondem ao mínimo som ameaçador e deixam apenas seus sons como músicas para nossos ouvidos. Os mais curiosos ou desavisados até aparecem para nos dar à graça de sua beleza na forma mais natural possível que é em seu habitat.
Após alguns minutos de caminhada, o peso da mochila, que antes não incomodava, já começa a fazer a diferença. O pescoço e ombros já ardem exaustos de suportar o peso constante. A minha estratégia de driblar o efeito do peso, a qual era estar sempre mudando a mochila de posição, se mostra cada vez menos eficaz a medida que o tempo passa. Com a mochila cheia nas costas, uma maleta de medicamentos na mão direita e uma panela de pressão para esterilizar material na mão esquerda meus movimentos ficam limitados.
Passando por um pequeno riacho de águas geladas e claras paramos para nos refrescar. No meu pensamento, já deveríamos estar bem perto da comunidade pelo tempo que havíamos andado, mas foi quando o médico Oscar soltou um comentário para mim, no mínimo desanimador: - Acho que já estamos quase na metade do caminho!
Quem já caminhou em meio à floresta amazônica e com peso no “lombo” sabe do que eu estou falando. Fora da Floresta, já subi o Pico da bandeira que é uma caminhada de horas e ainda peguei chuva de granizo lá em cima, já caminhei no cerrado e cerradão por horas seguidas, já caminhei floresta adentro no pantanal e já fiz muitos percursos dentro de áreas rurais perto das cidades, mas igual a floresta amazônica não tem igual. Diga isso quem já subiu o pico da neblina! A floresta suga as forças. O calor úmido sufoca, nos puxa para baixo e só quem é adaptado não sente tanto.
Já que não havia saída se não continuar, continuei..... Juntei as forças e segui meu caminho.
A trilha até a comunidade é bem demarcada e não há necessidade de guia. Passamos por terrenos alagadiços, troncos sobre árvores, cursos de água, terrenos arenosos, subidas, descidas e em grande parte do caminho a trilha era encoberta por folhas sobre um emaranhado de raízes. Meu coturno já havia perdido parte da sola e nada! Em uma das descidas, já com o pé sendo arrastado, o mesmo ficou preso em uma das raízes e perdi o equilíbrio. A panela de pressão e a maleta de medicamentos desceram primeiro, rolando, e eu logo atrás, capotando. Graças aos espíritos da floresta não foi nada além de um susto. Naquela hora a seleção natural já fazia sua segregação. A trupe dividia-se entre, os mais adaptados que incluía o médico Oscar e o barqueiro, os apenas empolgados que era o grupo composto apenas por mim e o grupo dos adaptados mas preguiçosos, ou melhor ,“relaxados” que incluía a minha auxiliar indígena e o técnico de enfermagem. A Trupe dos adaptados ficava bem mais à frente pendendo de vista os demais grupos, o indivíduo empolgado ficava no meio perdendo de vista o grupo dos adaptados mas preguiçosos os quais ficavam bem atrás. Ninguém me viu cair, só mesmo eu me vi girando!!!
Após apenas uma hora e meia de caminhada que mais pareciam 10 horas a trilha começa a se abrir e uma visão magnífica se estende sobre meus olhos. Era a Santa Terezinha, a própria! Não a santa, mas a comunidade.. Que alívio. Ao chegar uma multidão de crianças me recebeu. As mesmas que já haviam recebido o médico e o barqueiro anteriormente. O médico pedia por “arcó” que supostamente significava água na língua nativa.
Após nos reunirmos novamente, tentamos comunicação, no entanto, ninguém ali falava português. Relaxando, atei minha rede em uma construção de madeira e teto de folhas de caranã onde estava bem fresquinho e sob o olhar curioso das crianças hupdas descansei.
Esperávamos pela professora, a única que sabia falar o português no local.
Logo que a professora chegou, a cumprimentamos e pedimos para que a mesma nos conseguisse alguns carregadores para pegar o resto do carregamento que havia ficado na beira do rio. Apesar da aparência pequena e frágil, os hupdes são uma etnia forte e resistente. Perfeitamente adaptados a vida na floresta. Fazem na metade do tempo o mesmo caminho que fizemos e com muito mais peso nas costas.
O pagamento pelo serviço de carregamento, posteriormente, foi feito da maneira usual aqui na região, o escambo. Pilhas, fumo, gasolina ou rancho (comida) são mais bem vindos que dinheiro, coisa de pouca utilidade no meio da mata.
Seguiu-se um banho de rio e rancho na pança. Com o dia acabando a noite cai fresquinha e o céu mais estrelado da minha vida se abre diante dos meus olhos. Já estava gravado na memória! Igarapé Taraquá, 2003, nunca será esquecido........

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

VENEZUELA ON FIRE


VENEZUELA ON FIRE
Sexta-feira
Ah se todo o dia fosse assim!!! Tranquilo até demais..
Estava no pólo base de Cucuí. Eu atendia e parava, atendia um pouco mais e esperava mais paciente deitado em minha rede, atendia mais um pouco e dava umas remadas de canoa – é, eu estava aprendendo – atendia de novo e lia alguma coisa.
Numa das vezes que peguei a canoa passaram um tenente e dois soldados do exército venezuelano correndo pela rua assustados. Passaram na casa do Teba, o motorista do padre, e logo após, mais uns quatro juntaram-se a correria.
Mais tarde a correria teria explicação. O depósito de gasolina deles havia explodido e este ficava bem ao lado do depósito de munições. Dá para imaginar!!!!!!!

ARU


ARU

Quarta-feira

Noite mal dormida devido ao frio das noites de “Aru”. Aru segundo eu são os únicos dias de frio que a região amazônica enfrenta durante o ano, segundo os militares é a combinação entre a grande concentração de umidade e elevadas temperaturas o que faz surgir uma espécie de névoa; uma densa camada de baixa altura, normalmente permeando as copas das árvores e atingindo, em média, 300 pés de altura. Não importando quantos pés de altura eu passei frio. Minha rede de garimpeiro, fina como um papel e leve como uma pluma deixava a névoa fria percorrer minhas costas acariciando-a e deixando-a gelada como "din din". Fiquei “pedalando” , como muitos dizem, a noite inteira.
Como na região amazônica, em seus, noventa e nove porcento do tempo faz calor, não estava preparado para o frio. Só não sei que altas temperaturas são essas que os militares estão falando, mas que eu passei frio eu passei. E pernas pra que te quero!!!!!!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

DE VOLTA A FLORESTA


DE VOLTA AO AMAZONAS....DE VOLTA A CUCUÍ
BUSTAMANTE...
Hoje achei um caderno de anotações no qual fazia meus textos sobre o dia a dia da Floresta. Lendo um destes textos, o que já havia se perdido volta novamente à mente como um filme e tudo passa lentamente como se estivesse bem em frente aos olhos.
Terça feira de atendimento odontológico no pólo base de Cucuí ( tríplice fronteira do Brasil-Venezuela e Colômbia). Logo após o almoço chega um casal da comunidade de Bustamante para atendimento. Com os comentários, percebemos que a comunidade já estava há um tempo sem atendimento e então, resolvemos atende-los naquela mesma tarde imaginando que as condições de higiene bucal seriam as mesmas de Cucuí, ou seja, razoáveis. Mais tarde descobriríamos que aquele pensamento seria um grande erro.
A comunidade de Bustamante fica a mais ou menos uns 50 minutos de voadeira (barco à motor de popa de alumínio) da comunidade de Cucuí. Da primeira entrada que deixa o rio Negro, e entra no igarapé que dá acesso a Bustamante são 15 minutos em um labirinto estreito e sinuoso envolto em uma vegetação exuberante que impressiona.
Ao chegar à comunidade já notei que havia alguma coisa diferente logo de cara, já que os moradores só falavam em extrair dentes e não em restaurar dentes como em Cucuí.
Ajeitei minha sala de atendimento, a qual era uma mesa retangular por volta dos 2 metros de comprimento, largura suficiente para comportar um homem adulto corpulento e altura que chegava à região do umbigo quando em pé. Outra mesa era utilizada pela minha auxiliar como mesa de instrumentação. Ambas eram emprestadas pelos indígenas. Para maior conforto do paciente utilizávamos um travesseiro baixo, fabricado especialmente para estas ocasiões no qual a cabeça do paciente recostava e logo ao lado já ficava um saco de lixo preso por fita crepe na mesa o qual servia, ao mesmo tempo, de lixeira e cuspideira. O ar condicionado era a brisa, o jaleco era uma camisa de manga comprida para proteger dos piuns (mosquitos minúsculos hematófagos) e mais luva e máscara. A posição de atendimento era em pé mesmo. Ergonomia total!
Preparada a sala de atendimento, iniciamos muito bem. Primeiro uma restauração (ART). Fiquei feliz da vida e pensei: - Agora o resto vai só no embalo!
Depois disto até o tempo fechou. Uma chuva daquelas que só a floresta Amazônica pode produzir desabou em nossas cabeças. Estávamos em uma varanda a qual precisou ser protegida por uma lona e junto com a chuva lá fora ficou a luminosidade que tanto preciso para trabalhar em regiões sem energia elétrica. O sol se foi e com ele a minha esperança de um dia tranqüilo.
Nestes casos não penso em parar o atendimento, pois os locais são geralmente distantes, despende-se muita energia e dinheiro para se locomover até elas e isto sem contar que seria um grande desapontamento para uma população inteira que esperava por este momento à meses.
Seguro os dentes firmes e digo: - Próximo!! Penso: - Seja o que Deus quiser!!
Deus quis, mas que sofri eu sofri... O próximo paciente era um molar inferior complicado (desculpem-me os não dentistas), com muito sangue sendo perdido, sem sugador para limpar o local – somente com gaze- e com toda luminosidade que necessitava bloqueada pela chuva e pela lona. Uma tragédia dantesca!!! E eu perdido na selva amazônica como Dante na sua selva simbólica da perdição do pecado. Orei aos Céus pedindo uma luz, mas esta, por ora não veio.
A cada movimento do fórceps, ou melhor, o alicate de arrancar dente para os leigos; a mandíbula movia-se muito e o dente nem um milímetro. O tempo passa e eu ali, trabalhando. Muito tempo e muito suor depois consegui, consegui terminar o segundo paciente.
Próximo.....
Depois , parece que todos os pepinos que não tive nos últimos dias concentraram-se em Bustamante. As crianças tranqüilas de Cucuí transformaram-se em monstros que berravam até machucar os tímpanos. Todas as extrações subseqüentes foram casos complicados agravados pelas condições de atendimento.
A tarde é longa e chega ao fim. A luz de esperança das minhas orações não vem como luz, mas como escuridão. O sol começa a se por e à medida que ele se vai minhas boas expectativas retornam. O dia tinha chegado ao fim, com muito esforço, mas com o sentimento de dever cumprido. De qualquer maneira, a demanda era muito grande e mais tarde, outro dia, teria que voltar a Bustamante para apagar mais um incêndio.
Na volta, quase chegando a Cucuí, já anoitecia. Fizemos uma parada estratégica antes do pelotão de fronteira (guarda de fronteira) para tomarmos um copo de vinho e comermos um pedaço de bolo de uma festa de aniversário para a qual havíamos sido convidados.
Seguimos viagem após “a social” a uma boa velocidade e de repente um foco de luz forte em nosso rosto. Diminuímos a velocidade e com voz firme gritamos: - Saúde!! Tínhamos que nos identificar para podermos passar pela guarda de fronteira já que o nosso pólo base ficava após a mesma, no entanto, antes de chegar em outro país. Se a pessoa não se identifica, corre o risco de ser alvejada pelos fuzis dos militares.
Deito em minha rede já no pólo, pensativo e cansado. Mais uma lição de vida no meu dia a dia na floresta.
Acordo do meu filme Flashback após ler este texto sobre Bustamante. Lembro-me do povo sofrido de lá e atualizo-me:
- É, o Haiti também é por aqui!!!!



OBS: Ao terminar leia o provérbio haitiano na figura, vale a pena!!!