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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Diário de Cucuí


DIÁRIO DE CUCUÍ

A saída que estava programada para terça-feira, dia 1 de julho de 2003, só foi acontecer na quinta-feira, dia 03, na parte da tarde devido a atraso dos medicamentos. Conseguimos embarcar nossos pertences lá pelas 14h30min h.
Depois disto, a parte mais difícil da partida, a despedida da minha família. Sem saber se a minha filha teria consciência do que estava acontecendo, dou um beijo e um abraço nela e desejo que na sua cabecinha tudo fique claro que vou mais eu volto. Em relação a minha esposa, fico mais sossegado já que sinto que ela está mais tranqüila e madura. O que me corta o coração é que o meu tempo com elas foi muito curto, mas tentarei compensar na volta.
O prático, Lopes, liga o motor Honda 30 Hp e acelera. Logo no início notamos que o motor tem algum problema. Está muito lento e neste ritmo a viagem será mais longa. Durante o trajeto, muito verde, algumas comunidades e sítios isolados no meio da mata. De repente, o prático levanta-se do banco do barco para ter uma visão melhor das águas do rio à nossa frente. Logo diminui a velocidade e o motor apaga. Foi aí que eu e a minha auxiliar, Rose, vimos o problema. Um rebojo (redemoinho) dos grandes bem à nossa frente. A voadeira segue seu caminho com o motor desligado em direção ao rebojo. Atingimos o redemoinho de frente, e a voadeira que estava muito pesada embica em direção a coisa. Bate o bico no centro e quase "alaga". A voadeira gira enquanto seguro firme na borda e no carote de gasolina vazio ao meu lado. Ficamos um tempo ali, meio tenso enquanto o prático tentava acionar o motor novamente. Motor funcionando, saímos daquela situação e a tranqüilidade volta. O motor continua lento, e nosso destino para pernoitar, a comunidade de Juruti, parece cada vez mais longe.
Anoitece e nada de chegar. Decidimos continuar já que, segundo Lopes, a parte do Rio Negro que estávamos navegando era tranqüila e sem pedras aparentes nesta época do ano. A Lua crescente iluminava parcialmente a escuridão noturna. Seguimos caminho até encontrarmos uma luz no meio da floresta. Navegamos pela beira do rio e o morador, que já havia ouvido o ronco do motor , chega na beira com uma lanterna. Logo que diminuímos a velocidade o motor apaga de novo. Conversamos com o morador e o nosso destino está a cerca de uma hora do ponto onde estávamos. Naquele breve momento logo após a resposta, o silêncio se instala e ouvimos um barulho de corredeira. A velocidade da voadeira, que estava parada com o motor desligado começa a aumentar, ou seja, estamos sendo puxados pela correnteza para as cachoeiras. Mais um breve momento de tensão ocorre quando aquele bendito motor se recusa a ligar. Novamente, depois de algumas tentativas o motor pega e a tranqüilidade volta. O rio à noite parece bem tranqüilo de dentro da voadeira, mas só a idéia de estar dentro dele, à noite, no escuro e nomeio de uma floresta aonde a comunidade mais próxima pode estar à meia hora de voadeira é de arrepiar.
Continuamos nossa rota até Juruti e depois de várias luzes no meio da mata chegamos a tal comunidade. Uma das coisas que me impressionou muito é que muitas das comunidades do Rio Negro possuem gerador e conseqüentemente luz elétrica até às 22h00min h, ou até o diesel acabar.
Seis horas após a nossa partida, finalmente chegamos ao nosso destino. Cansados, com as costas e a bunda dolorida daquele banco nada confortável do barco, nos instalamos no pólo-base. Estavam no pólo, a equipe do Gilberto e os técnicos de enfermagem Moisés e seu amigo. O pólo base de Juruti é bastante confortável. Naquela noite parecia um hotel cinco estrelas. Televisão, geladeira, freezer, cama e até banheiro com chuveiro e privada. Era tudo que eu precisava! As camas eram duas, e eu e Gilberto, como bons cavalheiros, deixamos as duas auxiliares dormirem nelas enquanto ficávamos nas redes. Desconfortável!!!! Que nada! O cansaço me fez dormir como um bebê naquela rede e só acordar no dia seguinte revigorado.
Na manhã seguinte, a mesma novela, o tal do motor que se recusa a funcionar. Depois de muita insistência, o vencemos pelo cansaço. Aliás, cansaço era o que nos esperava já que com o nosso motor avariado, foram mais seis horas até nosso próximo destino, Cucuí.
Cucuí fica bem na tríplice fronteira do Brasil, Venezuela e Colômbia. Do Rio Negro a vista de Cucuí é linda. Uma pequena cidade aos pés de uma imensa montanha de pedra. Parte desta montanha fica do lado Venezuelano. Antes de entrar em cidade tivemos que fazer uma parada obrigatória no posto de fronteira do exército. Nada demais! Nosso prático que havia servido o exército e conhecia alguns militares nos fez atravessar sem documentos e sem revista. A chegada na sede de Cucuí foi tranqüila. Duro foi carregar 8 caixas de pastas de dente cada uma pesando quase 13 Kg, 5 carotes de combustível, mais várias caixas contendo rancho e material odontológico até a casa que nos servia de pólo-base.
Passada a malhação com a nossa bagagem, recebemos a visita ilustre de uma vizinha. Uma arara azul e amarela que voa pela região e até vem comer na nossa mão. Mais tarde, recebo outra visita. A agente de saúde de Cucuí chega e me ajuda a planejar as ações da semana que irá seguir. Uma coisa que me impressiona nas cidades pequenas é a velocidade com que as notícias correm. Duas horas depois da minha chegada já havia pessoas à procura de atendimento. Atendi a todas elas e resolvi tentar contato com minha família. O único orelhão que funcionava na cidade ficava no pelotão de fronteira o qual estava distante do lugar onde estava. Pensei um pouco mais de malhação não me fará mal. Andei, liguei e não consegui. Voltei ao pólo. Bebi uma coca cola, comi um pedaço de frango e enquanto escrevia este texto, conversava com meu prático o qual contava suas estórias do tempo em que ele servia o exército e antes disto. Do tempo em que ele carregava carotes clandestinamente do lado Venezuelano para revender em São Gabriel da Cachoeira, ao tempo em que ele fazia apreensões de cocaína pelo exército quase "sem querer querendo" segundo ele. A noite cai e logo adormeço na rede. Preciso estar preparado para o dia de trabalho de amanhã.

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