Pesquisar este blog

domingo, 21 de março de 2010

PAU PRA TODA OBRA


PAU PRA TODA OBRA
Médico, dentista e enfermeiro de interior é “pau pra toda obra”. É um tal de médico virando dentista, dentista virando médico e enfermeiro fazendo o papel dos dois. Em um local sem recursos sobra para quem tem o mínimo de conhecimento do assunto a ser tratado. Eu mesmo já suturei pálpebra cortada a paulada, já fui mediador de conflitos, já removi pedaço de pau de canela, já ajudei a cuidar de pessoas que sofreram de acidente ofídico, diarréia, no entanto, isto que aconteceu na região do Alto Rio Negro já foi um pouco demais......
Após um dia cansativo de atendimento na comunidade de Marabitana localizada as margens do Rio Negro, atamos nossas redes no centro comunitário do local e dormimos.
Centro comunitário é o local aonde acontecem todos os eventos que da comunidade nos quais se incluem reuniões, eventos culturais, bailes, atendimentos da equipe de saúde. Nesta noite era nosso alojamento também.
Acordo meio confuso, sonolento e ouvindo vozes do lado de fora e como ainda estava escuro me levanto da rede para checar o que estava acontecendo. Vejo luzes de lanternas e diversas vozes vindo em nossa direção. Uma destas vozes se identifica; era o agente de saúde indígena nos chamando.
Neste caso, a equipe de saúde eram eu ( odontólogo), minha auxiliar e o barqueiro. Como já disse que em interior o que tem mais conhecimentos do assunto assume o pepino, tive que tomar frente neste assunto médico. O AIS nos informou que em uma comunidade próxima havia uma gestante em trabalho de parto e nós éramos os únicos na área.
No primeiro momento, pensei, mas não expressei: - Parto ??!!! E o que eu tenho com isso ??!!!! Mas, apesar de não entender nada de parto além da parte de confeccionar o bebê, decido ir até a tal comunidade para ver em que poderia ajudar. Seguem, eu , o agente de saúde e o prático (barqueiro).
Eram 5:00 da manhã, a madrugada de ARU fazia o vento nos cortar de tanto frio. A voadeira segue rasgando as ondas do rio e a escuridão esconde as possíveis pedras do leito, mas a arte de desviar das mesmas do nosso barqueiro destaca seus anos de prática neste mesmo rio.
Após alguns minutos chegamos a uma comunidade pequena, de apenas algumas casas e um grupo de pessoas vem nos recepcionar. Sigo acelerado até a casa da gestante já adiantando a anamnese com os familiares. Segundo eles, a gestante encontra-se em trabalho de parto há mais de 24 horas, com dores e contrações.
Busco nas profundezas do meu “imenso” conhecimento de obstetrícia alguma razão para aquela criança não estar nascendo e não encontro nada, até porque eu nunca fiz obstetrícia.
Encontro a futura mãe em uma rede com uma fogueira acessa bem ao seu lado e diversos familiares aflitos ao seu redor.
Olhei em volta, olhei para a gestante, olhei para o chão e depois olhei para o céu. A única coisa que me veio à cabeça foi apalpar a barriga da mãe para tentar identificar se a criança estava em posição pélvica, pois sabia que assim o parto seria mais complicado. Ao apalpar a barriga, me pareceu no momento que a cabeça não estava na posição correta. Perguntei a idade da gestante e fui informado que ela tinha 14 anos e que era seu primeiro parto. Pensei: - Agora complicou de vez!!!
Talvez você, meu leitor, deva estar se perguntando onde está a parteira da comunidade? Durante o processo de contato com o homem branco, muitas das tradições foram perdidas, muitas compulsoriamente. Pajés, grandes conhecedores das plantas e ervas medicinais da floresta, foram proibidos pela igreja de praticar sua medicina sob a acusação de que era demoníaca. Isto criou um processo de dependência do homem branco difícil de reverter já que este conhecimento o qual era passado de geração em geração já não existia mais. Muitas comunidades ainda possuem parteiras, mas os pajés, aqui na região do alto rio negro, já são extremamente raros, somente persistem os Kumus e benzedores.
Já que não tinha muita coisa para fazer em relação à gestante, decido então remover a paciente até o pólo base mais próximo, o pólo base de juruti o qual ficava a algumas horas de distância daquela comunidade.
Como aquela madrugada estava fria, peço às pessoas que tragam cobertores para cobrir os novos passageiros da nossa voadeira. Após um tempo chegaram com apenas um cobertor fino para cobrir a gestante. Eles usam fogo para se aquecer e fogo na voadeira junto com gasolina não dá, não é!!??
Durante o trajeto para a comunidade de Juruti, o frio nos açoitava em meio aos gemidos periódicos da mulher e o ronco do motor, e eu torcia para chegarmos a tempo no pólo base aonde nós encontraríamos enfermeiros.
O lençol que cobria a paciente não era suficiente para manter o calor e então ofereço o meu casaco. Ela agradece e volta aos seus gemidos.
Finalmente chegamos ao pólo, mas o que encontramos não foi o que esperávamos. Ninguém no pólo. Os enfermeiros já haviam descido o rio de volta a São Gabriel da Cachoeira já fazia dias e a equipe que havia permanecido até um dia anterior a este era a equipe do dentista deste pólo que, como eu, também teve que sair as pressas levando uma criança que havia passado a noite com eles com diarréia e vômito. Disseram que o estado de infestação por acaris lumbricóides era tão grande que o menino chegava a vomitar os vermes. E criança pequena, todo mundo sabe, para morrer de desidratação nestes casos mais graves “é daqui para ali”. Ninguém quer ter uma responsabilidade destas e ser acusado de negligência por ter segurado a criança por um tempo maior do que se devia. E mais uma vez se confirma a troca de profissões que acontece no interior.
O momento começa a ficar mais tenso e a única saída que vejo é através da radiofonia do pólo base pedir o resgate da paciente.
Rapidamente entro na freqüência do rádio e requisito o resgate da mesma. A voadeira de resgate é mais rápida e mais confortável do que nossa voadeira de 40 Hp. Com os seus 90Hp de potência voa sobre o rio negro. É claro que se tivesse radiofonia na aldeia que estávamos teria feito isto há muito mais tempo e já saberia que não haveria ninguém neste pólo. Um aparelho de preço muito acessível comparado com a sua utilidade aonde só o mesmo funciona como meio de comunicação.
Assim que foi confirmado que a ambulância estava a caminho partimos em direção ao encontro da mesma. Nós descendo o rio e ela subindo. Nada mais podia se fazer a não ser esperar e esperando o tempo passou e encontramos a dita cuja subindo o rio, voando pelas corredeiras.
Na imensidão do rio só as duas embarcações. Diminuímos a velocidade, seguramos a ambulância com as mãos enquanto a grávida atravessava de uma embarcação para a outra. Lá havia ao menos uma enfermeira que com certeza, tinha mais experiência em parto do que eu, afinal, o único parto que havia visto tinha sido o da minha filha e ainda por cima foi cesariana.
Mais aliviado por tudo ter se resolvido sem maiores contratempos, volto para Marabitana para mais um dia de atendimento.
Após este dia estafante de trabalho, deito mais uma vez em minha rede e medito sobre o que se passou.

segunda-feira, 1 de março de 2010

BENTO MENTIROSO


FLORESTA AMAZÔNICA
BENTO MENTIROSO
A mentira está em todo lugar de tal modo que até parece que nossa sociedade não conseguiria viver sem ela. Existem as mentiras “boas” que são aquelas que são ditas para evitar que alguma coisa de ruim ou constrangedora aconteça. Imagine se todos nós fossemos super sinceros, seria um desastre. Existem as mentiras maldosas que são aquelas que são ditas com a intenção de causar discórdia ou para tirar vantagem de alguma situação. E existem aquelas mentiras que não são boas e nem são ruins, são inócuas. São ditas só para serem ditas, talvez na intenção de entreter, passar o tempo ou chamar a atenção, no entanto não causam nenhum mal. Estas são as mentiras ditas por Bento, uma figura local como tantas outras aí por esse nosso imenso Brasil.
Por volta de 1 hora descendo o caudaloso rio negro de voadeira encontra-se a comunidade de Marabitana. Esta é uma das grandes comunidades do alto rio negro e a casa de algumas figuras ilustres e “mitológicas” deste rio.
Seu Bento é um senhor por volta dos 60 anos de idade, muito falador e simpático, desde que não pisem no seu calo. Ao chegarmos a Marabitana, nós, a equipe de saúde , fomos convocados para uma reunião com os moradores locais. Seu Bento era a voz do povo Marabitanense, eleito pelo povo Capitão do lugar. Capitão é o cacique modificado pela influência militar na região. Todos os caciques viraram capitães no rio negro. E então, este capitão em questão, assume o seu posto e toma frente nas decisões e reivindicações do seu povo.
Após um surto endêmico de diarréia em sua comunidade, Bento reclamou sobre o atraso no atendimento durante o surto e a dificuldade de comunicação que a comunidade tem já que não possuem radiofonia. Reclamar da falta de radiofonia é praticamente uma regra nas comunidades do extremo noroeste do amazonas e também pudera, em uma região maior que o estado do Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos, sem estrada e sem energia elétrica o único meio de comunicação rápido fica sendo o rádio.
Ao final da reunião, reclamações à parte, seu Bento iniciou um de seus tão famosos “causos”. Ele estava com uma diarréia fortíssima. Chegava a suar e a tremer e era uma diarréia com sangue “ao vivo”, segundo ele. Ficou tão fraco que morreu. Logo após morrer ele se viu em uma estrada e logo à frente havia uma bifurcação. Um lado ia para o inferno e o outro ia para o céu. No início da bifurcação havia um segurança e este não o deixava entrar para nenhum dos caminhos. Começaram então a discutir e devido a esta discussão com o ser divino ficou tão nervoso que acordou para a vida de novo para poder contar esta experiência paranormal para todos nós.
Após alguns dias fiquei intrigado e curioso em saber o porquê que o mesmo também estava tentando pegar o caminho para o inferno. Como já me encontrava distante, não consegui a resposta e provavelmente a mesma seria mais um dos casos de ficção paranormal dos muitos “causos” contados aqui na região a cabeça do cachorro, em plena selva amazônica.
Não é a toa que a própria comunidade o conhecia como Bento Mentiroso. Vê-se que até nos rincões do Brasil, os políticos mantém sua característica principal, a mentira. Ao menos esta é inofensiva!!!!!!