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sexta-feira, 19 de junho de 2009

Pé de coelho


Pé de coelho
Meu amigo de faculdade está construindo um blog sobre pesca submarina, e por sinal muito bom, e ao vê-lo descrever suas peripécias submarinas, lembrei-me de uma das minhas muitas peripécias na mata, ou melhor no rio. Começa assim:
- É noite de inverno na aldeia de perigara. O calor escaldante e a nuvem incontrolável de mosquitos do verão dão lugar a uma brisa que resfria os ossos e a uma quantidade mais razoável de mosquitos.
Termino de jantar e próximo a uma fogueira aguardo fora do posto de saúde o sono chegar para que possa descansar do dia de trabalho.
Em meio à escuridão ouço vozes. O posto de saúde fica entre o rio e a aldeia, só que a a distância entre as duas é relativamente grande. Tudo que vem da aldeia em direção ao rio tem que passar perto da minha residência no mato, o posto. Quando não estou introspectivo, me agrada jogar conversa fora com os amigos indígenas já que estes possuem estórias muito incomuns para nós da cidade.
Vejo que se aproximam em dois, um com uma sacola na mão e o outro com uma sacola e uma tarrafa. Os cumprimento com um bom boa noite da roça.
- Noooooite! Eles retrucaram com o mesmo cumprimento e completam com um convite inesperado para aquela noite. Vamos pescar(interrogação)
Se eu fosse parar para pensar no que poderia acontecer não teria ido, mas como não gosto de perder uma boa oportunidade de uma experiência cultural rebati na lata, Vamos!!!
Pescaria á noite e em reserva indígena não é somente pescaria sem luz, mas também tem muito risco envolvido. Primeiro, como era inverno o rio estava em seu nível mais baixo, com muitas pedras, antes encobertas pelas águas, brotando como pontas afiadas ou bancos pedregosos no leito do rio. A única coisa que tínhamos para nos guiar era uma lanterna e o conhecimento dos indígenas sobre o trajeto do leito profundo do rio. Outra coisa são os jacarés e onças, os quais são muito mais ativos à noite. Outro detalhe são os mosquitos que também são mais ativos a noite. Com a graça de Deus, os mais perturbadores deles, os mosquitos, não incomodavam tanto aquela noite.
Sem nenhum equipamento de pesca segui até o porto em meio a uma conversa de pescador engraçada em que um contava vantagem sobre o outro de quem pescava mais.
Em sua grande maioria, os indígenas do pantanal não pescam de vara e molinete. É somente carretel, linha, anzol e chumbada. Iria pescar com um carretel emprestado.
Partimos na voadeira de motor 25hp da aldeia, doado pela Funai. O motor ronca e voamos para o nosso destino, seguindo o trajeto curvilíneo do leito profundo do rio na escuridão e desviando das pedras apenas com o pensamento, acredito eu.
Após alguns minutos subindo o rio, paramos em um remanso. Tarrafa na mão, chumbada na boca e em um movimento coreografado em arco lança-se a rede. O artefato é usado para pegar as iscas as quais usaríamos para capturar os peixes maiores que era o que nos interessava mais. Após alguns lances já tínhamos sardinha suficiente para nossa pescaria e então partimos para o nosso ponto de pesca. Este era uma pedreira com um fosso de águas profundas com promessas de pintados e jaús.
Aportamos na pedreira e amarramos o bote nas pedras. Com a lanterna iluminava a escuridão e percebi que minúsculos pontos vermelhos, aos pares , denunciavam que não estávamos sozinhos. Havia Jacarés por todo o lado.
Quem já foi no pantanal em época de seca sabe do que eu estou falando. Uma vez contei mais de 100 jacarés, um após o outro em apenas um dos lados do rio.
Recebi meu equipamento de pesca logo após a chegada. Um carretel de linha grossa, se não me engano 1mm ou mais, uma chumbada pesada e um anzol barra 6, como falam por lá. Como já tinha alguma experiência com linhada pura não me fiz de rogado e imediatamente perfurei a sardinha com o anzol, girei a linha,chumbada e isca para pegar velocidade e liberei tudo, apenas deixando a linha escorregar por entre os dedos suavemente até a isca encontrar a água novamente. Deixo a chumbada fazer o trabalho de levar tudo para o fundo do rio e espero com paciência. O meus companheiros fazem o mesmo, lançam suas iscas e esperam.
Logo vêm as primeiras capturas na linha de meus companheiros, as intragáveis piranhas. Piranha, em minha opinião é quase que uma praga no pantanal. A vantagem de pescar a noite é que a pessoa consegue fugir mais delas, mas mesmo assim ainda se pega piranhas à noite.
Estava quieto e até satisfeito, pois não tinha enfrentado tudo aquilo para pegar piranhas. Mesmo sabendo que se batesse um Jaú muito pesado na minha linha eu não conseguiria segurar na mão,teria ao menos a experiência de tentar.
Por volta de uma hora depois já estávamos com algumas piranhas e uns dois abotoados o qual é um parente do bagre mais conhecido no sul e sudeste por armado. E eu, continuava ali, passando frio e segurando a linha. Nada de peixe! Nem um beliscão. A gozação começa e o pescador iniciante, eu, continua rebatendo as zombarias. Já imaginava sair apenas com a experiência na memória.
De repente um puxão violento acontece na minha linhada. Tento segurar, mas não consigo, pois a linha queimava a pele da palma da minha mão. Deixo-a escorrer por entre os dedos com cuidado até a velocidade da puxada diminuir e então tento recolher a linha. Novamente outra puxada violenta e mais linha se vai. Repito o procedimento várias vezes e cada vez que recolho consigo ganhar um pouco mais de linha do que o peixe consegue puxar. Os indígenas ficam apreensivos e pedem para recolher eles próprios. Digo:
-Não, este é meu! Nem que eu tenha que perder, mas este é meu!
Ao final o grande peixe, já cansado, chega a beira das pedras e os indígenas correm, pegam o porrete que utilizam em pescarias para atordoar peixes grandes e batem na cabeça do grande exemplar.
Atordoado o Jaú é retirado da água. Mais duas porretadas certeiras para terminar o serviço e o som ecoa pelo leito do rio e por entre as árvores da floresta. É o fim!
O Jaú de mais ou menos 7 quilos e quase um metro de peixe se mostra por inteiro. Apesar de pequeno para um Jaú que pode chegar a mais de 100 quilos, é um troféu que retiro das águas e o tão sonhado almoço de amanhã. A malhação dos indígenas acaba e começa a malhação do “homem branco”. Para quem não conhece, o Jaú é um dos peixes mais difíceis e pesados do rio. Peixe robusto e de puxada firme, freqüentemente quando se entoca em locas de pedras ninguém mais tira. É como se fosse o Arnold Schwarzenegger dos rios, grosso e forte, mas não tão saboroso quanto o pintado, a gostosona de Copacabana.
Na volta para casa, orgulhoso e feliz pela experiência, ao olhar os outros peixes em relação ao meu vêm a lembrança das crianças indígenas. Apesar de ninguém passar fome naquele local rico em fauna e flora, imagino a felicidade naqueles rostinhos ao ver um espécime tão bonito e corpulento. As famílias são grandes e um banquete volta e meia não iria fazer mau a ninguém. Penso bem e entrego o troféu aos meus companheiros de pesca. Agradecidos, voltam para as suas casas e eu volto ao meu recinto de descanso com o prêmio apenas na memória. Estou satisfeito!
No próximo mês, só para não falarem que foi sorte de principiante, volto à pescaria com os mesmos figurantes. O protagonista, eu, volto à cena e desta vez com dois exemplares, um pintado e outro Jaú enquanto os outros seguem com seus palmitos, piranhas e abotoados. O mito da sorte de principiante foi quebrado, e enquanto eles discutem o fato, fico eu, procurando em surdina, o pé de coelho escondido nas minhas roupas!