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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

DE VOLTA A FLORESTA


DE VOLTA AO AMAZONAS....DE VOLTA A CUCUÍ
BUSTAMANTE...
Hoje achei um caderno de anotações no qual fazia meus textos sobre o dia a dia da Floresta. Lendo um destes textos, o que já havia se perdido volta novamente à mente como um filme e tudo passa lentamente como se estivesse bem em frente aos olhos.
Terça feira de atendimento odontológico no pólo base de Cucuí ( tríplice fronteira do Brasil-Venezuela e Colômbia). Logo após o almoço chega um casal da comunidade de Bustamante para atendimento. Com os comentários, percebemos que a comunidade já estava há um tempo sem atendimento e então, resolvemos atende-los naquela mesma tarde imaginando que as condições de higiene bucal seriam as mesmas de Cucuí, ou seja, razoáveis. Mais tarde descobriríamos que aquele pensamento seria um grande erro.
A comunidade de Bustamante fica a mais ou menos uns 50 minutos de voadeira (barco à motor de popa de alumínio) da comunidade de Cucuí. Da primeira entrada que deixa o rio Negro, e entra no igarapé que dá acesso a Bustamante são 15 minutos em um labirinto estreito e sinuoso envolto em uma vegetação exuberante que impressiona.
Ao chegar à comunidade já notei que havia alguma coisa diferente logo de cara, já que os moradores só falavam em extrair dentes e não em restaurar dentes como em Cucuí.
Ajeitei minha sala de atendimento, a qual era uma mesa retangular por volta dos 2 metros de comprimento, largura suficiente para comportar um homem adulto corpulento e altura que chegava à região do umbigo quando em pé. Outra mesa era utilizada pela minha auxiliar como mesa de instrumentação. Ambas eram emprestadas pelos indígenas. Para maior conforto do paciente utilizávamos um travesseiro baixo, fabricado especialmente para estas ocasiões no qual a cabeça do paciente recostava e logo ao lado já ficava um saco de lixo preso por fita crepe na mesa o qual servia, ao mesmo tempo, de lixeira e cuspideira. O ar condicionado era a brisa, o jaleco era uma camisa de manga comprida para proteger dos piuns (mosquitos minúsculos hematófagos) e mais luva e máscara. A posição de atendimento era em pé mesmo. Ergonomia total!
Preparada a sala de atendimento, iniciamos muito bem. Primeiro uma restauração (ART). Fiquei feliz da vida e pensei: - Agora o resto vai só no embalo!
Depois disto até o tempo fechou. Uma chuva daquelas que só a floresta Amazônica pode produzir desabou em nossas cabeças. Estávamos em uma varanda a qual precisou ser protegida por uma lona e junto com a chuva lá fora ficou a luminosidade que tanto preciso para trabalhar em regiões sem energia elétrica. O sol se foi e com ele a minha esperança de um dia tranqüilo.
Nestes casos não penso em parar o atendimento, pois os locais são geralmente distantes, despende-se muita energia e dinheiro para se locomover até elas e isto sem contar que seria um grande desapontamento para uma população inteira que esperava por este momento à meses.
Seguro os dentes firmes e digo: - Próximo!! Penso: - Seja o que Deus quiser!!
Deus quis, mas que sofri eu sofri... O próximo paciente era um molar inferior complicado (desculpem-me os não dentistas), com muito sangue sendo perdido, sem sugador para limpar o local – somente com gaze- e com toda luminosidade que necessitava bloqueada pela chuva e pela lona. Uma tragédia dantesca!!! E eu perdido na selva amazônica como Dante na sua selva simbólica da perdição do pecado. Orei aos Céus pedindo uma luz, mas esta, por ora não veio.
A cada movimento do fórceps, ou melhor, o alicate de arrancar dente para os leigos; a mandíbula movia-se muito e o dente nem um milímetro. O tempo passa e eu ali, trabalhando. Muito tempo e muito suor depois consegui, consegui terminar o segundo paciente.
Próximo.....
Depois , parece que todos os pepinos que não tive nos últimos dias concentraram-se em Bustamante. As crianças tranqüilas de Cucuí transformaram-se em monstros que berravam até machucar os tímpanos. Todas as extrações subseqüentes foram casos complicados agravados pelas condições de atendimento.
A tarde é longa e chega ao fim. A luz de esperança das minhas orações não vem como luz, mas como escuridão. O sol começa a se por e à medida que ele se vai minhas boas expectativas retornam. O dia tinha chegado ao fim, com muito esforço, mas com o sentimento de dever cumprido. De qualquer maneira, a demanda era muito grande e mais tarde, outro dia, teria que voltar a Bustamante para apagar mais um incêndio.
Na volta, quase chegando a Cucuí, já anoitecia. Fizemos uma parada estratégica antes do pelotão de fronteira (guarda de fronteira) para tomarmos um copo de vinho e comermos um pedaço de bolo de uma festa de aniversário para a qual havíamos sido convidados.
Seguimos viagem após “a social” a uma boa velocidade e de repente um foco de luz forte em nosso rosto. Diminuímos a velocidade e com voz firme gritamos: - Saúde!! Tínhamos que nos identificar para podermos passar pela guarda de fronteira já que o nosso pólo base ficava após a mesma, no entanto, antes de chegar em outro país. Se a pessoa não se identifica, corre o risco de ser alvejada pelos fuzis dos militares.
Deito em minha rede já no pólo, pensativo e cansado. Mais uma lição de vida no meu dia a dia na floresta.
Acordo do meu filme Flashback após ler este texto sobre Bustamante. Lembro-me do povo sofrido de lá e atualizo-me:
- É, o Haiti também é por aqui!!!!



OBS: Ao terminar leia o provérbio haitiano na figura, vale a pena!!!

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