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terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Nos tempos da fazenda do Vovô


Nos tempos da fazenda do Vovô


Ainda me lembro que uma das grandes alegrias minhas da infância, da época em que freqüentava a fazenda do meu avô, era andar na carroceria da caminhonete, mais precisamente a carinhosamente chamada Jabiraca.
Era uma daquelas antigas Toyotas Bandeirantes que na época já era antiga. Cheia de buracos na lataria que apelidamos de sistema de refrigeração e um sistema de freio avançadíssimo para a época o qual se aproxima do sistema ABS de hoje. O freio só funcionava a partir da terceira bombada no pedal, não parava de imediato.
Apesar dos defeitos nós amávamos e ainda posso sentir o vento da bahia batendo no meu rosto enquanto aquela caminhonete sem freio descia a ladeira com algumas crianças na carroceria. Mas isto são coisas do tempo quando ninguém havia notado a presença do cinto de segurança nos veículos. Tempo de pessoas despreocupadas e famílias enormes.
Mais recentemente, vivi uma experiência que me vez relembrar nitidamente os tempos da fazenda do vovô.
Rio São Lourenço, Mato Grosso, Brasil.
Cortávamos suas águas velozmente em um barco de alumínio de 8 metros e motor de popa Mercury 40Hp. Época de início das cheias quando as nuvens sempre ameaçam desabar sobre suas cabeças e pedaços de troncos de árvores descem o rio rodando em um balé sincronizado, ávidos para pegar uma hélice submersa pelo meio do caminho.
O marrom da seca dá lugar ao mais vivo verde possível e o ciclo seca-cheia novamente tem seu início e a vida agradece.
Já estávamos a pouco menos de uma hora subindo o rio, da aldeia São Benedito para a aldeia de Perigara, e avistamos o porto da aldeia. Cumprimentamos os habitantes da única família que mora na beira do rio, com o costumeiro aceno de mãos e seguimos para o porto.
Ao desembarcarmos, tudo tranqüilo. Pego parte das minhas tralhas e sigo até o posto caminhando sobre a grama baixa aparada pelos dentes ruminantes dos bois e cavalos dos indígenas.
Mais a frente uma movimentação anormal começa. Um grupo de índios segue para o porto enquanto um grupo grande de mulheres olha de longe, curiosas, os acontecimentos. O barqueiro havia ficado no porto para desembarcar os tonéis de diesel e gasolina.
Volto para pegar mais um pouco da bagagem alheio aos acontecimentos, mas já imaginando que algum fato ocorria. A enfermeira passa por mim e exclama:
- Eles vão prender o barco!!!
Minha mente racional não se abala e enquanto carrego caixas, malas e mais caixas para o posto de saúde, calculo as possibilidades. A primeira é eles prenderem só o barco e o motor e liberar a equipe. A segunda é prenderem barco, motor e segurarem a equipe até conseguirem o que querem, o que não é somente o motor com certeza! Em ambos os casos, o veículo de saída, no caso o barco, já não estava mais disponível e a idéia de passar o natal na aldeia não me agradava em nada. A única certeza minha era que até o dia 17 de dezembro teria que estar em Cuiabá para pegar meu vôo para Vitória, custasse o que custasse. Estava disposto até a pegar uma canoa para chegar a tempo em Vix.
O único trecho de saída por terra era uma estrada de mais ou menos 20 km de extensão em meio à mata virgem e lama até o primeiro vestígio de civilização, um dos postos avançados da reserva particular do SESC. Se fosse necessário percorreria a pé estes quilômetros saindo de madrugada até o posto do sesc e de lá pediria uma carona ou andaria mais um pouco até o vilarejo mais próximo e de lá o mundo. De qualquer maneira, não foi preciso utilizar tanto cálculo. Ficou decidido que o motor e barco ficariam como forma de pressão para a visita do chefe dos serviços de saúde, no caso o chefe do Distrito Sanitário Especial Indígena Cuiabá, e nós voltaríamos com o carro da Funai dirigindo por um chefe de posto indígena, dois dias antes do planejado. Maravilha, a emenda saiu melhor que o soneto!
Com a volta já marcada fico tranquilo e desempenho minhas funções de dentista normalmente.
No dia D, ou melhor, dia V ( de volta) embalamos nossos pertences e esperamos a caminhonete. Os primeiros a entrar fomos eu , a enfermeira e a técnica de enfermagem. Tudo Beleza! Bem acomodados e bagageiro já quase lotado.
Passamos no posto da Funai e entra a diretora da escola gestante com seis meses. Opa começou a apertar! Logo depois entra mais uma indígena com a sua filhinha. Lá vai o único homem para a carroceria, adivinha quem, eu! E logo depois mais um indígena que seria o acompanhante de uma paciente a qual já estava em tratamento em Cuiabá. Pronto! Ferrou! Só sobrou a carroceria, caçamba, a parte traseira do veículo e já tinha pressentido que quem tinha tomado na parte traseira tinha sido eu. E ainda teria que dividir a parte traseira, já apertada, com o índio. Sem duplo sentido, por favor!!!
Meu companheiro de carroceria é uma das peças mais hilárias da aldeia. Chegou devagar, pulou na carroceria sem nenhum murmuro e a primeira coisa que ele falou sorrindo foi:
- “Vamo tomá uma gelada já, já!!!!”
O carro acelerou e partimos para enfrentar as seis horas de estrada de chão até uma cidadezinha chamada Santo Antônio de Leveger, distante algumas dezenas de quilômetros da capital, e o restante seria de asfalto.
Sentados na borda da tampa traseira da carroceria e segurando na corda que amarrava a carga adentramos o pior trecho da estrada. Havia chovido faz uns três dias e a estrada se encontrava em um misto de lama e poeira formada pelos três últimos dias de sol escaldante.
A cada solavanco grande, meu amigo limitava-se a emitir sons do tipo:
- Ai, Ai! Ui!
E nos maiores era:
- Ave Maria! Dói demais!
Dizia num típico e engraçado sotaque pantaneiro, olhando para mim e com um sorriso quase gargalhada no rosto.
E a cada dez minutos continuava:
- Vamos tomar uma gelada já, já!
O sorriso, o vento no rosto e até os solavancos foram me fazendo voltar no tempo da fazenda do vovô quando crianças ainda se divertiam sem o mínimo de conforto. Mais do que os sorrisos foi a atitude frente a situação que me impressionou.
E como num passe de mágica tudo se transformou! Voltei a infância!
Nos atoleiros me imaginava surfando ou montando cavalo Xucro em festa de rodeio. O vento no rosto passou a ser carinho; a poeira passou a ser fator físico de proteção solar de altíssima eficácia; os solavancos foram seguidos de risadas; os respingos de lama transformaram-se em pintura de guerra. A natureza, nunca a vi tão verde, tão fresca e tão próxima. A chuva virava refresco e a gelada... Ah, a gelada passou a ser uma em cada parada.
E assim seguiu e uma viagem de seis horas transformou-se em oito.
Cheguei ao meu ponto de apoio em Cuiabá (a casa da minha prima) parecendo uma escultura barroca. O cabelo agora tinha luzes e estava armado com a ajuda de um poderoso laquê orgânico biodegradável, a poeira, em um penteado que mesclava Elvis Presley e Amado Batista.
Mais do que dores nas costas e no abdômen tirei desta viagem. Recordei da minha infância e reaprendi que a atitude frente a uma situação é muitas vezes a direção que a situação toma.
No final, esta foi uma das melhores viagens que já fiz e estou até pensando que nas próximas, mesmo com espaço, eu irei no bagageiro.
- Quer fazer esta viagem comigo???????? rsrsrsrrsrs

Um comentário:

Gilberto Granato (Arawãkanto'i) disse...

motor mercury? homem de lama,
pois saiba que o terceiro maior município do país (SGC) agora tem prefeito indígena: Pedro Garcia. Via a nossa capital indígena e viva as caçambas de carros pelo mundo a fora...