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terça-feira, 18 de novembro de 2008

MINHA PRIMEIRA NOITE!!


Minha primeira noite! Nunca tive uma noite como esta e antes que comecem a especular começarei a explicar.
Após alguns anos andando, ou melhor, boiando nos rios do pantanal passei inicialmente de turista para integrante da sociedade , ou seja, fui de passageiro a integrante do ambiente sócioetnopolíticogeográfico local. Que palavra comprida!
Vamos desmembra-la para um melhor entendimento.
Sócio - de sociedade – Agora sou praticamente parte da sociedade. Eles Falam : Olha o dentista do pantanal! Outros falam: Olha o dentista de ìndio! Alguns podem até pensar: Olha o dentista ìndio! Não, acho que não!
Etno – de etnia, raça: Agora faço parte deste ambiente de mistura de raças. Ìndio, branco, mameluco, mamelouco e o escambau que é a miscelânea de raças brasileira.
Político – de política, obviamente. Participo e até faço um pouco de política local, afinal todos nós fazemos política só que muitos acham que não estão fazendo, mas estão.
E geográfico - de geografia , outra obviedade! Entendo a geografia e faço parte da geografia! Se vc perguntar: - Aonde fica a escola que caiu? A resposta será: - Fica perto do consultório do dentista. Entendeu?! Geografia!
Deixando os sufixos, prefixos e multifixos de lado voltemos a minha primeira noite. Não, eu não estava querendo desviar a atenção não!
Como passei a fazer parte do sistema, sempre que corro pelos rios e corixos do pantanal fazemos paradas estratégicas para diversas finalidades. Exemplo: - Se vc está com fome e não tem como fazer comida por que está em um barco, vc planeja para parar na casa da Suely bem na hora do almoço; se vc acha que não vai conseguir chegar a tempo na aldeia antes de anoitecer, vc para no Mamed para conversar, que por coincidência é dono do Hotel/Pousada Arara Azul, e espera inocentemente o sol virar lua. E como sou parte do sistema também sou usado pelo mesmo. Diversos habitantes esperam o dentista de índio chegar para fazer uma consulta, obturação ou extração, mesmo não sendo índio. É isso aí, o sistema utilizando o sistema.
Em uma destas vezes em que atendia no povoado de São Benedito que fica justamente em frente ao Hotel/Pousada Arara Azul, na pressa de voltar para a aldeia de Perigara saímos de São Benedito, sem utilizar o sistema, ou seja, dormir no Hotel. Tínhamos certeza de que pegaríamos um trecho à noite no rio, no entanto não contávamos com o calendário lunar contra nós.
Fazer este trajeto pelo rio a noite é considerado perigoso só que até já estávamos acostumados a tal. Com o motor Yamaha 40 hp a viagem não seria tão demorada e o trecho a noite menor ainda. Seriam o total de mais ou menos 1 hora no rio.
Com o motor em neutro o piloto, cacique de perigara, puxa o cordame e o motor ronca, então engata a marcha e acelera para voarmos através dos rios e corixos pantaneiros.
Navegamos por um trecho estreito do rio São Lourenço em uma região que se chama Pirigara. Não confundam com a aldeia de Perigara. O Pirigara é uma região em que o rio São Lourenço se divide em diversos braços irrigando o pantanal, antes de morrer ao encontro do Cuiabá.
Anoitece e para o nosso azar é uma noite sem lua. Entendeu agora porque o calendário lunar estava contra nós? Não?! Nas noites de lua é possível navegar com uma certa segurança nos rios, mas em noite sem lua é Breu Total!!!! Tínhamos em mãos uma lanterna apenas a qual não era adequada para iluminar trechos extensos já que estaríamos navegando a uns 40 km/h e a resposta a qualquer adversidade teria que ser rápida devido ao campo de visão reduzido.
Ainda no trecho estreito do rio, sentados e tranqüilos, atingimos um tronco submerso e subitamente o barco inclina-se para um dos lados fazendo com que quase viremos. Depois do acidente, paramos mais à frente e o cacique anuncia:
Cacique – Quebrou o pino?
Eu - Que pino?
Cacique - O pino que segura a Hélice?
Eu - E agora?
Cacique – Tenho uma reserva.
Eu – Graças a Deus!

Estávamos no barco, eu, o cacique, a enfermeira, uma indígena e sua filha de 6 anos. Era o único homem que poderia ajudar, então lá fui eu segurar a lanterna enquanto o cacique batia o pino novo na rabeta, do motor. Sem duplo sentido, por favor!
Estávamos até com sorte, pois em época de cheia não teríamos nem lugar para parar já que o rio transborda e nesta ocasião conseguimos até uma bela prainha. Está certo que estávamos cercados por onça de um lado, jacarés e piranhas de outro, contudo terra firme ainda é bem melhor.
Concerto feito e partimos novamente rumo a escuridão. Eu não sei porque cargas d’água eu ainda não comprei uma lanterna ainda depois de 4 anos nas matas do Mato Grosso. Suspeito que deve ser porque quase sempre que preciso, alguém tem uma por perto. Apesar de não ter nenhuma lanterna eu ainda me dou o direito de reclamar, e vc sabe, lanterna de índio é foda! Desculpem o palavreado! Quando a pilha ainda não acabou, pode contar que está preste a acabar. E foi justamente o que aconteceu. Na escuridão completa ficamos! O cacique diminuiu a velocidade e continuamos a viagem utilizando ao máximo as pupilas indígenas super dilatadas que devem ser geneticamente iguais às dos felinos já que eu não enxergava nem a ponta do meu nariz, e olha que eu tenho um senhor nariz.
Ainda tranqüilo, seguimos lentamente até que ouço um estrondo, barulhos de galhos quebrando e sinto o barco inclinando-se com a proa para cima. O reflexo me fez abaixar e me proteger atrás de uma das caixas de madeira com material odontológico. Ao cairmos na realidade, percebemos que estávamos travados em cima da copa de uma árvore que havia caído no rio e agarrado no fundo do seu leito. Seus galhos estavam virados para a nossa direção simulando lanças e o que me protegeu foi a caixa de madeira. Então estávamos nós em cima de uma árvore em uma cena no mínimo bizarra. A voadeira a qual literalmente voou, encalhou nos galhos mais fortes da árvore e ficamos ali, presos como passarinhos no ninho. Como já tínhamos asas, resolvemos tentar sair dali desembarcando, e com os pés nos galhos robustos forçamos uma marcha ré. Eu de um lado e o cacíque de outro.
- Um, do, lá, si, já! Mexeu um pouco
- De novo! Já! Mais um pouquinho.
- Segura que agora vai, huuuuurrrraaaa!!! Foi.
Desencalhamos. E sendo levados pela correnteza contrária ao nosso destino o
motor funciona novamente e pernas, ou melhor, hélice pra que te quero..
Nem tão mais tranqüilo assim, caio na real de que aquela viagem estava sendo a maior roubada e fico imaginando que os troncos que vemos de dia, cheios de pássaros lindos, poderiam estar na nossa cara a qualquer momento.
A viagem segue tensa e o rio alarga-se. Finalmente chegamos ao trecho mais largo e seguro do rio.
Mais alguns minutos, e junto com o grito da bruxa que estava solta, vem o barulho do motor pifando. O motor para. O índio bate o cordame. E o motor na mesma. E o índio puxa o cordame. E o motor estático, nem sinal de vida. Nem um ultimo suspiro. Infarto ou AVC fulminante! Não sei se foi Deus ou o Diabo que pararam aquele motor. Desconfio que foi Deus, pois sinceramente prefiro dormir na mata a morrer com um pau cravado na cara! Sem duplo sentido, por favor!
Zingamos até a margem e paramos o barco. Meditamos ali por alguns minutos mesmo sabendo que o destino seria dormir ali. Por obra do acaso, tinha trazido a minha barraca e a enfermeira a dela. Subi no barranco e mesmo sem ver muita coisa procurei um terreno que seria adequado para a montagem da mesma. Tateando o solo para retirar possíveis gravetos e pedras que por ventura pudessem perfurar minha costela enquanto durmo, demarco o terreno. Monto a minha barraca e a enfermeira após dar a sorte de ser atacada por formigas fogo também consegue montar a dela. Enquanto isto o Cacique fica no barco afugentando com a Zinga ( pedaço de bambu comprido) jacarés curiosos. Neste caso é curiosidade de jacaré mesmo, pois creio que eles não estavam lá para nos comer.
No barco o cacique que lá estava por lá mesmo ficou. E olha que o convidei para dormir na minha barraca. A índia também resolveu dormir no barco, quem sabe era pra “conversar” um pouco mais com o cacique, e a filha da mesma dormiu com a enfermeira.
Depois de toda a tensão, dormir naquele chão de barraca com um casaco servindo de travesseiro, mesmo que em plena selva foi uma das melhores coisas que me aconteceram naquele dia, ou melhor, naquela noite.
Dormi como um anjo cansado. Acordei com os pássaros a minha volta. Zingamos rio acima por alguns minutos até encontrar o socorro vindo em nossa direção. O outro barco da aldeia veio nos buscar, nos rebocou e assim terminou a saga da minha primeira noite, na Mata!

3 comentários:

Gilberto Granato (Arawãkanto'i) disse...

zingar? corixos? Este vocabulário pantagônico está enriquecedor, faltou colocar socioetnicopoliticogeográficolinguístico!
que beleza de história meu amigo, adorei!
morri de rir...
que pousadinha tentadora hein?
E haja saco para tirar dente de kariuá...
ótima crônica
E depois me conta o que o cacique conversou com a amiga dele?

Rodrigo de Toledo disse...

kkkkkk.. Dudão, que loucura!! vivenciei cada palavra descrita nesta crônica! Sei o que vc passou, já tive uma experiência parecida, mas não com tantos revezes...
Abração!
Rodrigo de Toledo

Leodiana disse...

Você esqueceu de colocar aí, que nossa bela janta, foi umas bolachinhas de água e sal, repartidas entre o grupo, não eram muitas bolachas, dormimos com fome, sem banho....#$&¨$#¨¨&toda a pele grudando com pueira e suor $#%@*&*%%¨#, ah como eu valorizei o alimento, o banho e uma bela noite de sono. Mas como você mesmo colocou aí, foi melhor assim, que corrermos o risco de morrer num barranco com galhos de paus "fincados na cara", acho mesmo que foi sorte.
Um abraço, receba meus elogios, tdo que está escrevendo está mto bom, parabéns...