Era uma noite como outra qualquer. Estávamos em uma das varandas do posto de saúde da reserva indígena dos chiquitanos, estado do MT, fronteira com a Bolívia. Todas as noites, antes da energia elétrica chegar, ligávamos o gerador de energia a diesel e assistíamos a novela, um filme ou um DVD de música qualquer.
Pessoalmente eu não gosto de assistir DVD´s de música, mas o ritmo do lambadão era sucesso entre os “brancos” da equipe de saúde e principalmente entre os indígenas então, eu era praticamente forçado a assistir. De qualquer maneira representava uma boa experiência cultural.
As novelas já haviam se tornado um tipo de vício, como na cidade, e eram raros os dias em que não apareciam para assistir ao programa preferido. A beleza dos ambientes, das atrizes e dos atores parecia ser hipnótico, principalmente para quem não era acostumado com esta atmosfera.
Após a novela todos os indígenas voltavam para suas casas e eu desligava o gerador de energia.
Um grupo de jovens saiu pela escuridão sem uma lanterna sequer, o que é muito comum na aldeia. Apenas a lua crescente iluminava o caminho permitindo que se vissem somente vultos, mas mesmo assim o grupo saiu conversando alegremente.
Já me encontrava de vela acessa, nos últimos preparativos antes de adormecer e ouço alguns gritos nos chamando. A equipe fica alerta!!! Depois do expediente não é comum ter atendimento e sempre quando tem, geralmente é pepino. Grávidas, picadas de cobra e alguma criança pequena doente com febre estavam dentre as alternativas. Qual delas seria??
Quando os jovens chegaram esclareceu-se o fato. Picada de cobra. A maioria andava de chinelos havaianas e um deles não conseguiu ver o vulto da cobra no solo escuro e banh!!!! Veio a mordida!! Primeiro o susto , depois a ardência e a dor excruciante.
Quando chegou não conseguia mais dar passos e dois amigos o carregavam.
Apesar de ser um posto de saúde em meio a uma floresta indígena, não existem soros antiofídicos. O risco de morrer é maior caso a pessoa progrida para um choque anafilático em uma reação ao próprio soro do que a pessoa morrer da picada de cobra, dizem. Apesar disto, à 9 quilômetros do posto de saúde, existia um posto avançado do exército que tinha o soro antiofídico. É uma situação no mínimo estranha um posto de saúde que possui enfermeira e muitas vezes até médico não possuir o soro e um posto avançado que possui apenas um profissional que somente é treinado pelo exército para esta função ter o soro. São as incongruências do nosso país.
Chegaram gritando pela equipe e depois de ficar ciente do ocorrido pensei:
-O que nós iremos fazer?
Com o paciente já na maca, um dos indígenas corre em direção ao destacamento de fortuna, 9 km dali..
O paciente se contorcia em gemidos abafados pela própria intensidade da dor.
Os conhecedores de ervas chegam! O tratamento tradicional inicia-se antes da administração do soro.
Existe uma árvore que se chama lixeira e sua folha, a qual lembra uma lixa, é conhecida pelos curandeiros como fonte de cura ou alívio para a picada de cobra. O problema é que só funciona associada a uma substância que faz nós “brancos” torcer o nariz de nojo. Esta é a urina. E foi feito!!! Folha de lixeira “macetada” com urina – e dos outros. Deveria ser ingerida para alívio dos sintomas. Assim foi feito, em uma golada só!!! Torci o nariz, mas compreendi.
Enquanto as ervas faziam a sua parte os benzedores entraram em ação com as suas rezas curativas. O paciente alivia-se por um momento!! Diz que a “benzeção” do seu avô está começando a surtir efeito.
As horas passam e o indígena que foi buscar socorro já deve ter chegado ao destacamento militar.
Os minutos parecem horas e eu armo minha rede na varanda para esperar os acontecimentos. Descalço, ando pela varanda. De repente, piso em alguma coisa que parece me ferroar. A sola do pé começa a latejar e logo o pé também. A dor é intensa e deito em minha rede. Lembro que a noite, formigas carnívoras gigantes apelidadas de tocandiras costumam zanzar pelo local. Penso:
Deve ser uma destas!!
Com a perna enrijecida não consigo mais andar direito. Sinto a dor que o meu amigo indígena está sentindo. Imagino, que se uma formiga está fazendo isto comigo, o que será que uma cobra faria?!
Agora o dentista e o indígena se contorcem de dor. A dor de ambos vem em surtos repentinos os quais aliviam repentinamente da mesma forma.
O tempo passa e a picada da formiga começa a aliviar.
O indígena permanece no soro fisiológico e nas rezas enquanto o soro antiofídico não chega.
Mais tarde o socorro chega de carro e o paciente é levado para o destacamento para aplicação do soro antiofídico e logo após é levado para a cidade. O posto de saúde acalma-se novamente.
Retiro minha rede da varanda e sigo para o quarto. A adrenalina da agitação me deixa pensativo, mas o cansaço me vence e adormeço mais uma vez.
Mais uma noite na floresta!!!!! Mais uma lembrança na memória. Mais uma estória para contar.
A culpada foi a Jararaca, ou melhor, quem pisou nela!!
Fui................................